Leonora Carrington. Revelación

Chega a Madrid, na Sala Recoletos da Fundación MAPFRE, a primeira exposição antológica dedicada à artista Leonora Carrington realizada na Espanha. Uma autora versátil e eclética, em busca contínua de novas formas de expressão, Carrington é uma figura-chave na formação de um panorama mais completo da arte do século XX. A exposição, organizada pela Fundación MAPFRE em colaboração com o ARKEN Museum for Modern Art de Dinamarca, poderá ser visitada de 11 de fevereiro a 7 de maio de 2023.

TEXTO: ÁREA DE CULTURA DA FUNDACIÓN MAPFRE

A exposição se desenvolve ao longo de 10 seções que combinam o relato cronológico com o estudo dos temas mais marcantes da obra de Leonora Carrington. Desde a sua formação e primeiras influências na Inglaterra e em Florença até o contato com os surrealistas em Paris, passando por sua época em Saint-Martin-d’Ardèche, por sua experiência traumática na Espanha, a emigração para Nova York e o México como nova pátria.

A debutante

Em 1932, a jovem Leonora fica impressionada com a pintura italiana que contempla durante sua estada em um internato em Florença, entre as quais incluíam Paolo Uccello e Antonio Pisanello. Uma influência que não será palpável em suas primeiras obras, mas sim nas posteriores. Sua produção mais notável desse período é um conjunto de aquarelas agrupadas sob o título genérico Sisters of the Moon Irmãs da Lua, que refletem a preocupação da artista com o lugar que as mulheres ocupam no mundo. Em cada uma delas está representada uma personagem feminina e em algumas há uma alusão direta a divindades como Íris, Fortuna ou Diana.

Desde muito cedo, sua produção pictórica corre paralela à escrita, a ponto de ser difícil discernir o que fez primeiro, o texto ou a obra, como em Hiena no Hyde Park, uma de suas primeiras telas e que tem como correlato o conto que escreveu nesse mesmo ano com o título «A debutante», no qual satiriza a sua própria estreia na sociedade perante a corte do rei Jorge V.

O encontro: Saint-Martin-d’Ardèche

Em 1936 Leonora se estabelece em Londres e frequenta aulas na academia de arte do pintor cubista Amédée Ozenfant. No verão, visita a exposição The International Surrealist Exhibition e se apaixona por uma obra de Max Ernst, reproduzida no livro Surrealism. Como se fosse algo premonitório, conhece o artista no ano seguinte em um jantar e juntos fogem primeiro para Cornualha e depois para Paris, para finalmente chegarem à cidade de Saint-Martin-d’Ardèche, no sul da França. Graças à ajuda financeira de sua mãe, Leonora compra uma casa antiga onde o casal realiza sua própria obra de arte, tanto por dentro quanto por fora. Eles pintam portas, janelas e paredes com figuras híbridas e criaturas protetoras — como a quimera que originalmente decorava a porta de acesso à antiga cozinha, mas também nas fotografias que Lee Miller tirou durante aqueles anos em uma de suas visitas.

Leonora Carrington
Garden Bedroom [Dormitorio jardín], 1941
Óleo sobre lienzo
46 x 61 cm
Colección Ugarit Panamá
© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
Leonora Carrington Garden Bedroom [Dormitorio jardín], 1941 Colección Ugarit Panamá
© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023

Memórias de baixo: Santander

A Segunda Guerra Mundial interrompeu a vida de Max Ernst e Carrington em Saint-Martin-d’Ardèche. Após a segunda prisão de Max, Carrington foge para a Espanha com a intenção de cruzar para o outro lado do Atlântico a partir de Lisboa. Ao chegar em Madrid, em 1940, é estuprada por um grupo de militares filiados à facção nacionalista. Este fato, que na época não contou a ninguém, e os dramáticos acontecimentos vividos desde o início da guerra precipitaram um episódio psicótico na autora que levou à sua internação em um hospital psiquiátrico em Santander. Tratada com uma droga poderosa que podia gerar crises epilépticas e anular a vontade da paciente, a experiência dessa internação marca uma virada em sua vida e em sua obra. O relato de sua passagem pelo sanatório é publicado pela primeira vez em 1944 em uma revista sob o título «Down Below» [Abaixo] depois de ter sido ditada em francês no ano anterior pela própria Leonora à Jeanne Megnen, para se livrar da angústia que lhe causava esta memória. Durante o internamento também realizou inúmeros desenhos e a pintura Down Below (1940), uma espécie de elaboração da sua doença.

Rumo ao desconhecido: Nova York

Em julho de 1941, Leonora Carrington, então com 24 anos, desembarca em Nova York — após um rápido casamento de conveniência para poder sair de Lisboa — acompanhada de seu novo marido, o escritor, poeta e diplomata Renato Leduc. Lá conhecem a comunidade de artistas surrealistas que, como eles, fugiram de uma Europa e uma Espanha em guerra. Neste período, antes de se instalar no México, a obra de Carrington, com uma iconografia cada vez mais complexa, aborda o luto pela sua experiência da guerra, da doença mental e do confinamento, que agora se junta ao exílio. No desenho Brothers and Sisters Have I None Não tenho irmãos nem irmãs podemos entender que a condição do exílio é dupla: no que diz respeito a uma Europa destruída e de uma família que a renega. Green Tea Chá Verde resume essas experiências. Sem dúvida, a figura envolta em pele de cavalo como se fosse uma crisálida é a própria Leonora, com um fundo que remete à paisagem inglesa, à paisagem toscana da pintura italiana e ao parque do sanatório de Santander. A imobilidade da protagonista contrasta com o movimento dos dois cachorros-cavalos amarrados um ao outro em árvores que lhes servem de rabo.

Memória e origem: Crookhey Hall

Em 1943, Leonora se muda para a Cidade do México, onde se cerca de um círculo de exilados que, como ela, tinham suas raízes na Europa: Kati e José Horna, Remedios Varo e Benjamin Péret. Na casa dos dois últimos conhece quem vem a ser seu futuro marido, o fotógrafo Emerico (Imre) Weisz, «Chiki», e pai de seus dois filhos, Gabriel e Pablo. A experiência da maternidade inicia um período de regressão na obra de Carrington. Representa sua casa de infância, a mansão neogótica de Crookhey Hall, bem como visões familiares e infantis carregadas de melancolia, embora mais calmas do que as que havia produzido em Nova York. É o caso do berço que realiza em conjunto com o escultor e marceneiro andaluz José Horna para Norah, filha deste, decorado com animais que acompanharão a menina desde o seu nascimento: uma tartaruga gigante, uma cabra, onças, lhamas, cavalos e outras criaturas misturadas que parecem retiradas das obras de Lewis Carroll e da pintura renascentista italiana.

Saberes arcanos: alquimia, magia e mito

Juntamente com os animais, a ecologia e a mulher, as artes divinatórias e as correntes esotéricas são temas que interessam a Carrington por as considerar uma via alternativa de acesso ao inconsciente e aos enigmas do ser humano e da natureza. Com a pintora Remedios Varo e a fotógrafa húngara Kati Horna, mergulha no mundo da magia, uma vez que as três a entendem como uma ferramenta para recuperar os poderes femininos «proibidos». Os livros de magia, alquimia, astrologia e tarot ocupam um lugar privilegiado em sua biblioteca, além de lhe proporcionarem uma iconografia que utiliza repetidamente em sua obra, como na tela Molly Malone’s Chariot (Carro de Molly Malone), onde os arcanos O Carro e O Mundo recriam a lenda da jovem Molly, protagonista da popular canção irlandesa «Cockles and Mussels» [Berbigões e mexilhões], num quadro que hoje é apresentado ao público pela primeira vez.

A deusa branca

Em 1948 Carrington faz Le Bon Roi Dagobert (Elk Horn) [O Bom Rei Dagobert (Cernuno)], a primeira pintura onde representa a si mesma como a Deusa Branca, que sem dúvida remete ao ensaio homônimo de Robert Graves. Publicado no mesmo ano em que a tela da artista é datada, este ensaio é, segundo ela, uma das revelações mais importantes de sua vida. Na narração, Graves se concentra na recuperação de diferentes cultos em torno de divindades femininas que desapareceram ao longo da história, mas que sobreviveram em fábulas e poemas orais. Esta Deusa Branca, cujo culto foi destruído pelo patriarcado e é recuperado por Graves, é um símbolo da força e do poder feminino. A tese de Graves baseia-se na descoberta do culto à uma mesma divindade feminina em várias partes do Mediterrâneo, que por sua vez correspondia aos cultos dos deuses celtas. Em todas elas venera-se a Deusa Tríplice, também conhecida como a «Deusa Branca» e nomeada em cada lugar de uma forma diferente. Ártemis ou Atena na Grécia, Ishtar na Babilônia, Ísis para os egípcios ou Astarte para os semitas, é sempre a mesma deusa e simboliza a luta do patriarcado contra o matriarcado, assim como a luz e a sombra, ou seja, a dicotomia entre o bem e o mal.

Leonora Carrington (pintura)
y José Horna (talla en madera)
La cuna [The Cradle], ca. 1949
Madera tallada y pintada, cuerdas y tela
100 x 130 x 66 cm
Colección particular
© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
© 2005 Ana María Norah Horna y Fernández
Leonora Carrington (pintura) y José Horna (talla en madera)
La cuna [The Cradle], ca. 1949 Coleção particular © Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
© 2005 Ana María Norah Horna y Fernández

Consciência feminina

A partir da década de 1960, Leonora Carrington torna-se cada vez mais interessada pelos movimentos feministas. Apesar de nunca ter sido militante, sua casa no México tornou-se ponto de encontro de um pequeno círculo de mulheres preocupadas com sua situação de desigualdade e falta de direitos. A pintura Women’s Awareness (Consciência Feminina) é utilizada na impressão do cartaz homônimo como sinal de «indignação e revolta com a situação das mulheres», como declarou a própria autora em uma entrevista. Neste guache, Carrington subverte o mito de Adão e Eva e dá a esta o caráter de deusa. O desejo da artista de transmitir às mulheres a mensagem de retomada de seus poderes é uma constante em toda a sua produção literária e artística.

Existem outros mundos: México

Ao chegar no México, o interesse de Carrington pela magia é renovado graças a um povo para o qual as práticas e rituais de bruxaria fazem parte da vida cotidiana. Com apenas vinte e cinco anos, parecia um lugar onde tudo é novo; os rituais em torno da morte, bem como as crenças em animais guardiões e entidades protetoras encontram ressonância com os mitos e tradições celtas que absorveu em sua infância.

Muitos de seus amigos, exilados como ela, têm em comum o fascínio pela arqueologia e etnografia mexicanas: o pintor austríaco Wolfgang Paalen, que coleciona objetos pré-colombianos; Alice Rahon, que capta a paisagem e as tradições populares em seus poemas e pinturas; e Benjamin Péret, que traduz para o francês os códices maias do Chilám Balám (de Chumayel) e compila seu Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique.

Ser humano, ser animal

Os animais reais ou mitológicos são um dos motivos mais recorrentes na obra de Carrington. Criaturas mitológicas, híbridas e fantásticas nas quais a própria artista se transforma e sob as quais se autorretrata, a ponto de se definir como um «animal humano fêmea». Mais tarde, enfatiza: «Existem algumas faculdades que não aceitamos ou reconhecemos porque temos medo de que alguém pense que também somos animais, o que de fato somos». Esse amor pelos animais, que começou na infância, transformou-se ao longo do tempo em uma visão ecológica muito avançada para a época, pois a autora frequentemente expressa sua indignação com a atitude predatória da espécie humana e seus maus tratos ao ecossistema. Sua consciência ecológica, por sua vez, está intimamente ligada à visão feminista, já que para Carrington é somente através da recuperação do poder pelo matriarcado que o planeta pode ser salvo da destruição a que está sendo submetido. Esse sentimento também a fez se sentir atraída por outras religiões e culturas, como a budista, uma filosofia que promove a empatia e a compaixão por qualquer forma de vida.

Leonora Carrington
Sanctuary of Furies
[Santuario para las Furias], 1974
Coleção particular

Cortesía ARTVIA
© Estate of Leonora Carrington/
VEGAP, Madrid, 2023
Photo © David Stjernholm/
@david_stjernholm
Leonora Carrington
Mujeres conciencia, 1972
Coleção particular

© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
Leonora Carrington
The Giantess (The Guardian of the Egg) [La giganta (La guardiana del huevo)], 1947
Coleção particular

© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
Leonora Carrington
Down Below [Abajo], 1940
Coleção particular
Mia Kim
© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
Leonora Carrington
Transference [Transferencia], 1963
Tate: ofrecido por la Tate Americas Foundation, adquirido con ayuda del Latin American Acquisitions
Committee 2017, incorporado en 2021.

© Estate of Leonora Carrington / VEGAP, Madrid, 2023
Leonora Carrington
Are you Really Syrious
[¿Estás hablando en
sirio?], 1953
Coleção particular

© Estate of Leonora
Carrington / VEGAP, Madrid,
2023