Como já aconteceu com os produtos light ou as gorduras saturadas, o consumo de carne está agora em destaque no debate alimentar. A chave desta história está nas nuances: não há verdades absolutas e os tons de cinza predominam sobre o preto e o branco. Para que você possa entender este debate com as informações corretas, te contamos quais são as nuances adequadas.
TEXTO: LAURA SÁNCHEZ IMAGENS: ISTOCK
Embora a polêmica sobre o consumo de carne pareça ter ressurgido nestes últimos meses, a verdade é que essa controvérsia teve início em 2015. Naquele ano, a OMS incluiu a carne vermelha entre os alimentos cujo consumo aumentava o risco de desenvolver câncer de intestino. Anteriormente, a OMS já havia alertado sobre o perigo das gorduras e do açúcar, com consequentes campanhas de conscientização. O anúncio de 2015 marcou o início da batalha sobre a carne.
Mas o que exatamente a OMS estava anunciando? Esse organismo recomendou a redução do consumo de carnes, principalmente carnes processadas e carnes vermelhas, por serem consideradas, respectivamente, cancerígena (grupo 1) e possivelmente cancerígena em humanos (grupo 2A) pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), uma agência da OMS.
«No caso das carnes processadas, as evidências são sólidas. No caso das carnes vermelhas, há certa controvérsia porque os resultados dos estudos epidemiológicos não são tão claros», explica Oscar Picazo, gerente de projetos da Área de Promoção da Saúde da Fundación MAPFRE-. «Sabe-se que durante o cozimento da carne são produzidas substâncias cancerígenas como os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, as aminas heterocíclicas, nitrosaminas ou acrilamidas. No entanto, os resultados dos estudos não são tão contundentes como no caso das carnes processadas. Além disso, os primeiros estudos realizados agruparam os dois tipos de carne na mesma classificação. O que aconteceu é que, quando foram feitas análises separadas, o efeito negativo manteve-se para as carnes processadas, mas o nível de risco foi menor para as carnes vermelhas».
Outro fator umenta a polêmica. Oscar Picazo explica que os estudos epidemiológicos em que se baseiam esses resultados também apresentam outros fatores que distorcem os resultados: «por exemplo, as pessoas que tendem a consumir mais carnes processadas ou vermelhas são aquelas que tendem a cuidar menos da saúde, que têm uma dieta pior, que bebem álcool, fumam, são sedentários, etc. Embora haja uma tentativa de controlar esses tipos de hábitos, nem sempre é possível separar esses efeitos nos resultados dos estudos».
Vamos então aos números concretos. Quanta carne é consumida na Espanha? Os últimos dados do Relatório de Consumo Alimentar, elaborado pelo Ministério da Agricultura, Pesca e Alimentação, indicam que, em 2020, os espanhóis aumentaram seu consumo de carne em 10,5%, atingindo 2.305,25 milhões de quilos. O consumo médio por pessoa durante 2020 foi de 49,86 quilos por ano, o que representa 4,62 quilos a mais que em 2019. A carne in natura é a mais consumida, com um consumo per capita de 36,20 quilos por ano, 3,43 quilos a mais que no período anterior. O consumo per capita de carnes processadas equivale a um terço do das carnes in natura, com 12,39 quilos por ano, e o consumo de carnes congeladas totaliza apenas 1,28 quilos per capita.
A Agência Espanhola de Segurança Alimentar recomenda comer entre 200 e 500 gramas de carne por semana – a OMS aconselha não ultrapassar 500 gramas –, portanto, o consumo na Espanha está acima dessas recomendações. Não obstante, os dados de 2020 vêm acompanhados de outro fato importante: a permanência em casa devido à pandemia levou a um aumento no consumo de carne em 2020, rompendo a tendência de queda que vinha ocorrendo desde 2012.

Os dados indicam claramente a necessidade de reduzir o consumo para que os valores fiquem dentro das recomendações oficiais. Mas outra coisa bem diferente é reduzir o consumo devido à um possível malefício à saúde, como alguns setores têm afirmado. «Isso não é certo. Na verdade, a contribuição nutricional da carne é importante, principalmente em certas etapas da vida, durante o desenvolvimento de crianças e adolescentes, por exemplo», explica Oscar Picazo. «Na área da nutrição, o contexto é importante e, em uma dieta saudável do tipo mediterrânea, rica em vegetais, a contribuição nutricional de carnes de qualidade é positiva. É paradoxal, mas, por exemplo, batatas fritas ou assados à base de cereais (bolos, pão, etc.) também foram classificados como possivelmente cancerígenos em humanos (2A) devido à acrilamida, no entanto, ninguém diz que as batatas ou o pão fazem mal à saúde. Novamente aparecem fatores que devem ser avaliados caso a caso como, por exemplo, o contexto alimentar, como o alimento é cozido ou consumido, com que frequência é ingerido, quais outros alimentos estão presentes na dieta…».
Mais além da alimentação, há outros aspectos neste debate que também estão abertos a diferentes interpretações e, portanto, merecem esclarecimentos. Por exemplo, existe uma afirmação muito difundida de que são necessários 15.000 litros de água para produzir um quilo de carne. O setor de carnes esclarece que 90% da água utilizada na produção é «água verde», ou seja, água da chuva que, se os animais desaparecessem, continuaria caindo da mesma forma.
Também afirma que apenas 10% corresponde a «água azul» ou «água cinza», que as emissões de CO2 são menores do que em muitos plantios e que a produção de carne representa apenas 7,8% do total de emissões de gases do efeito estufa na Espanha.
«Os modelos de cálculo da pegada ecológica alimentar são muito complexos, e dentro do impacto ambiental não se deve ter em conta somente a pegada hídrica ou de gases do efeito estufa, mas também outros parâmetros como uso do solo, efeito sobre a biodiversidade, contaminação do solo, água e ar, gasto energético, etc.», explica Picazo. «Há muito trabalho a ser feito para melhorar os modelos de produção, mas considerar que passar à população a mensagem de que comer menos carne salvará o planeta é, na melhor das hipóteses, um pouco simplista».
A ética e a economia tampouco escapam dessa polêmica. Em relação à ética, é claro que é fundamental melhorar o tratamento dado aos animais e eliminar a crueldade ao longo do processo. Os ativistas que defendem os direitos dos animais promovem, portanto, a adoção de uma dieta vegana.
A permanência em casa devido à pandemia levou a um aumento no consumo de carne em 2020, rompendo a tendência de queda que vinha ocorrendo desde 2012
Do ponto de vista econômico, alguns setores, especialmente aqueles relacionados à indústria de alimentos, estão promovendo a produção de carne sintética. A carne artificial é produzida em laboratórios a partir de célulastronco extraídas dos músculos dos animais (vaca, frango ou porco), junto com outros elementos, como soro fetal bovino, mioglobina, vitaminas, aminoácidos, gordura e tecido conjuntivo. A apresentação dessa nova forma de produção aconteceu em 2012, em Londres, quando apresentou-se ao público o primeiro hambúrguer feito em laboratório. A Fundação Bill e Melinda Gates apoia esse tipo de produção, que ainda levanta muitas questões e gera debates acalorados. Outros grupos, como a comissão Eat-right ou o próprio Fórum Econômico Mundial, estão promovendo abertamente o veganismo, enquanto outras vozes os criticam.
Este é o caso do professor Frédéric Leroy, professor de ciência de alimentos e biotecnologia da Vrije Universiteit (Bélgica), que lidera uma corrente de opinião que considera que, atualmente, a carne é uma espécie de bode expiatório dos defensores do meio ambiente e do comércio. Leroy acredita que esses grupos baseiam muitas de suas conclusões em uma ciência falha. «A carne vermelha é um alimento rico em nutrientes e um componente-chave de nossas dietas evolutivas. A carne vermelha é consumida desde os primórdios da humanidade, às vezes em quantidades ingentes. Há um milhão e meio de anos, nos adaptamos tanto anatômica quanto fisiologicamente a comer carne, e não poderíamos ter sobrevivido sem ela», escreve Leroy. «Há estudos que mostram que o consumo de carne está associado a uma menor taxa de mortalidade e menos doenças cardíacas. O consumo de carne vermelha no contexto de ensaios clínicos randomizados não leva a um pior perfil de risco de inflamação, estresse oxidativo ou doenças cardíacas».
Em suma, como explica Oscar Picazo, no debate da carne muitas vezes nos deparamos com premissas que são vendidas como verdades absolutas, «tanto em termos de saúde como de meio ambiente. Mas, neste caso, nada é preto ou branco. No debate sobre a carne, há muitas nuances a serem abordadas».
