De 23 de setembro de 2022 a 8 de janeiro de 2023, a exposição poderá ser visitada na Sala Recoletos da Fundación MAPFRE em Madri. Julio González, Pablo Picasso e a desmaterialização da escultura sobre a colaboração entre os dois artistas que os levou a criar um projeto de escultura desmaterializada, «uma profunda estátua de nada, como a poesia, como a glória».
TEXT: ÁREA DE CULTURA DA FUNDACIÓN MAPFRE
Entre 1928 e 1932, Julio González e Pablo Picasso colaboraram artisticamente para a realização do monumento em memória a Guillaume Apollinaire que a comissão formada por sua viúva, Jaqueline Apollinaire, os poetas André Billy e André Salmon, entre outros, encomendou ao artista de Málaga. Este trabalho conjunto, que Picasso começou a realizar apenas quase dez anos após a morte de seu amigo, falecido em 1918, tem sido considerado tradicionalmente como o momento que deu origem a um novo tipo de escultura: a escultura em ferro. Esta nova forma de trabalhar o metal desempenhou um papel importante na produção artística das décadas centrais do século XX e seria considerada o equivalente escultural do Expressionismo Abstrato e do Informalismo; em outras palavras, o momento em que a escultura abstrata é criada. A segunda premissa a partir da qual este tema é normalmente tratado é a decisão de limitar o questionamento nos limites do pequeno conjunto de obras produzidas em colaboração pelos dois artistas (onze esculturas, sete delas, pequenos esboços) feitos em quinze ou vinte sessões de trabalho ao longo de quatro anos. Se a exposição Julio González, Pablo Picasso e a desmaterialização da escultura apresentada pela Fundación MAPFRE mostra algo, é que a questão é muito mais complexa, que permite uma melhor compreensão desta relação e que aborda problemas fundamentais na consolidação e compreensão da escultura contemporânea.
Como Tomás Llorens, curador da exposição salientou, «quando estudamos de perto, fica claro que as obras resultantes da colaboração entre Picasso e González respondem aos incitamentos da época em que foram criadas, mais que a um desejo de antecipação histórica. E estes incitamentos, o clima artístico e cultural de seu tempo, eram profundamente diferentes daqueles que marcariam o período pós-guerra». Se por um lado estas peças foram o resultado do clima artístico de Paris na virada de século e do Cubismo pós-Picasso, que respondeu ao impulso de transparência e desmaterialização adotado por Juan Gris, Henry Laurens, Jacques Lipchtiz e Alexander Archipenko, não podemos esquecer que na Barcelona modernista dessa época houve uma profunda mudança na visão das artes decorativas, que foram equiparadas às artes plásticas, levando a seu renascimento e, como consequência, da forja de ferro.
As carreiras artísticas de Picasso e González foram bastante diferentes, embora culturalmente próximas. Amigos desde muito jovens, os dois viveram na Barcelona modernista do início do século XX, trabalharam em Paris durante as três primeiras décadas e mantiveram um vínculo que só seria interrompido com a morte de González em 1942. Sua colaboração artística é analisada nesta exposição considerando o background e preocupações comuns, bem como o impacto que deixou em suas respectivas obras individuais. No caso de González, este trabalho conjunto deu origem a uma série de esculturas desmaterializadas, a uma linha criativa que «permite fortalecer a fantasia e a imaginação como chaves de sua poética pessoal» — palavras de Tomàs Llorens—; no caso de Picasso, aprender as possibilidades de forjar e soldar ferro, assim como criar algumas das esculturas mais importantes do século passado, por exemplo, Mulher no jardim.
O discurso expositivo, que nos permite traçar o trabalho conjunto destes dois grandes artistas do século XX e sua transcendência para a escultura moderna, é dividido em oito seções e começa cronologicamente pelo final, com um capítulo que é também uma homenagem.

Cabeza de toro, 1942
Pinacoteca di Brera, Milán
Doação de Emilio e Maria Jesi, 1984
© Sucesión Pablo Picasso. VEGAP, Madrid, 2022
Foto © Pinacoteca di Brera, Milano
I. Picasso 1942: homenagem a Julio González
Julio González morreu de repente em sua casa em Arcueil, em 27 de março de 1942. Apenas uma semana após a morte de González, Picasso criou uma série de natureza-morta que, em palavras do próprio artista, representavam «a morte de González»; este é o caso de Cabeça de touro que abre a exposição. Uma vanitas e uma homenagem póstuma ao amigo e sua obra. Basta olhar para a pureza estrutural do crânio pintado, que faz lembrar as esculturas de González.
Além disso, esse crânio —com suas conotações evidentes na cultura espanhola— nos leva a outra homenagem, um pouco mais tarde: a montagem do guidão e do selim de bicicleta que também recebe o nome de Cabeça de touro. Ambas as obras servem como uma evocação não apenas da amizade, mas também do respeito e admiração que existia entre os dois artistas.
II. Picasso, González e o modernismo catalão tardio (Barcelona, c. 1896-1906)
No final do século XIX vários debates foram realizados na Barcelona modernista, que tiveram um forte impacto na obra de artistas como Isidre Nonell, Joaquim Mir, Pablo Gargallo, Ricard Canals ou Carles Mani —colaborador de Gaudí na época —, assim como na dos jovens Pablo Picasso e Julio González, entre outros. Duas premissas mudaram o curso da arte e da cultura neste período. Por um lado, a linha que separava as artes plásticas das artes decorativas começou a ser debetida, com um consequente renascimento destas últimas. Por outro lado, a defesa de uma arte que respondesse às necessidades sociais de seu tempo, o que significava uma evidente preocupação dos artistas e intelectuais com os problemas sociais da modernidade. Muitos deles, considerados modernistas tardios, se envolveram com a situação dos mais desfavorecidos, os pobres e marginalizados. Esteticamente, logo se afastaram do simbolismo incipiente e defenderam um naturalismo e um certo primitivismo em que ressoavam ecos de Puvis de Chavannes, Gauguin, Auguste Rodin e particularmente El Greco, como pode ser visto nas ciganas mais populares de Nonell, as obras do «período azul» de Picasso, Os degenerados de Mani ou na Maternidade de González.
III. Precedentes da desmaterialização da escultura: cubismo cristalino e purismo (Paris, c. 1918-1925)
Tradicionalmente, considera-se que González chegou à desmaterialização da escultura através do cubismo de Picasso. No entanto, sabemos que os amigos, instalados em Paris, perderam o contato entre 1908 e 1921. Este fato torna possível que, embora González tivesse visto as esculturas cubistas mais desmaterializadas do artista de Málaga — realizadas entre 1912-1914 — foi a influência dos cubistas tardios, agrupados no chamado movimento purista, surgido em 1918 (entre eles, Amédée Ozenfant, Albert Gleizes, Henri Laurens ou Juan Gris), que lrvou o artista catalão a estudar a escultura metálica e a desmaterialização dos volumes.
IV. A desmaterialização na tradição cubista (Paris, c. 1924-1930)
De Gaudí a Le Corbusier, uma das maiores preocupações da arquitetura durante as primeiras décadas do século passado foi a necessidade do que Tomàs Llorens denominou «transparência». Esta questão de transparência logo afetou também a escultura, e muitos artistas antes de Picasso e González abordaram o assunto. Pablo Gargallo, grande amigo do artista catalão, o primeiro Giacometti ou Jacques Lipchitz, passaram do cubismo redondo para este tipo de peça desmaterializada. Também na escultura cubista por excelência, a Guitarra de Picasso, realizada em 1924 —por volta da mesma época em que o monumento a Apollinaire foi encomendado—, esta tendência de desmaterializar volumes também pode ser observada.

Figura: proyecto para un monumento a Guillaume Apollinaire, Paris, outono 1928
Musée National Picasso-Paris
Doação Pablo Picasso, 1979
© Sucesión Pablo Picasso. VEGAP, Madrid, 2022
Foto © RMN-Grand Palais (Musée national Picasso-Paris) / Adrien Didierjean
V. A colaboração de González com Picasso (Paris, 1928-1932)
A colaboração entre González e Picasso começou em setembro de 1928 e deu origem a um conjunto de esculturas em metal nas quais a força criativa do artista tomou forma graças ao domínio da técnica de González. O processo de trabalho conjunto se prolongou no tempo e finalmente não se materializou, pelo menos não da forma prevista, pelas contínuas diferenças com o comitê que tinha encomendado a peça e que esperava um monumento de natureza tradicional. Depois de muitas análises e algumas peças como Cabeça (1928) ou a maqueta do que hoje conhecemos como Figura: projeto para um monumento a Guillaume Apollinaire, basicamente uma jaula estreita e alta realizada com arames cortados, como barras em miniatura, em 1929, Picasso e González começaram a trabalhar em Mulher no jardim, uma espécie de mulher-pássaro com um olho e o cabelo ao vento. Quando terminada, no final dos anos trinta, Picasso pintou a peça de branco. Esta escultura é o mais próximo ao que o artista de Málaga tinha criado para o monumento dedicado a Apollinaire; nunca foi colocada no lugar para o qual estava destinada, e ele a conservou em seu castelo de Boisgeloup junto com outra versão que pediu a González para fazer, neste caso em bronze forjado.
VI. González: explorações na escultura metálica (Paris, 1930-1932
Após seu trabalho conjunto, González não abandonou suas pesquisas sobre a desmaterialização da escultura, mas também não se voltou apenas para a abstração. Pelo contrário, durante os anos trinta ele combinou em suas pesquisas um certo realismo e primitivismo, com suas camponesas e sua posterior evolução para A Montserrat — como podemos observar, por exemplo, em suas máscaras de ferro—, juntamente com o que aprendeu do cubismo tardio e certa tendência para o onírico e fantástico. Estes aspectos, combinados, terão como resultado um trabalho que, como assinala Llorens, «intensificará a tendência à desmaterialização, como condição necessária para liberar a imaginação criativa, e a formulará como «desenho no espaço»». Este é o conceito que representa a desmaterialização levada ao extremo, expressa através de volumes descritos ou sugeridos pelo jogo de formas planas ou lineares executadas em metal. Alguns dos melhores exemplos desta desmaterialização dos volumes na escultura, podemos observar em Claridade (Personagem de pé), de 1932, e Grande maternidade, de 1934.
VII. Picasso: a oficina do escultor (Boisgeloup, 1930-1932)
Esta seção examina o trabalho independente de Picasso durante os anos de colaboração com González. É então quando ele monta sua oficina de escultura em Boisgeloup e abandona o problema da desmaterialização em obras nas quais o volume, a rotundidade das formas e a matéria passam a ser o centro de tudo. Estes foram os anos em que ele criou estas esculturas redondas com um certo ar neolítico, inspirado por Marie-Thérèse Walter.

Mujer peinándose I, 1931
Centre Pompidou. Musée National d’Art Moderne / Centre de Création Industrielle, Paris
Doação de Mme. Roberta González, 1953
Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais / Philippe Migeat
VIII. Picasso e González: epoimentos de guerra (Paris, 1937-1944)
A Guerra Civil espanhola e a Segunda Guerra Mundial não poderiam ser menos que um ponto de mudança na obra de González e Picasso, cuja arte sempre teve esse caráter de compromisso. É o período de Guernica e das «mulheres chorando» para o artista, como também O homem do cordeiro, a grande escultura feita sob a ocupação alemã em Paris. São os anos de A Montserrat e dos Homens Cactos para González. O diálogo entre as poéticas pessoais dos artistas torna-se ainda mais evidente. Tanto O homem do cordeiro como A Montserrat têm características primitivas e monumentais, bem como humanas e heróicas e, acima de tudo, ambas as obras mantêm um forte caráter mediterrâneo. As mulheres chorando são, como A Montserrat, uma transcrição da Piedade e das Dores da tradição cristã, um produto de sua época, estas obras parecem querer oferecer algum tipo de resposta à barbárie.
Pequena Montserrat assustada é a última escultura acabada conhecida de González, em um período difícil para o escultor, que, devido à guerra, carece de materiais para soldar ferro pelo qual, de forma paralela ao seu trabalho escultórico, realiza inúmeros desenhos. Além das diferentes versões desta «bem plantada», González esteve trabalhando em uma série de «homens cactos». Estas figuras transmitem um espírito muito próximo ao das Metamorfoses de Ovidio, um motivo que também está muito presente no trabalho de Picasso durante aqueles anos.

Guitarra, Paris, 1924
Musée National Picasso-Paris
Doação Pablo Picasso, 1979
© Sucesión Pablo Picasso. VEGAP, Madrid, 2022
Foto © RMN-Grand Palais (Musée national Picasso-Paris) /
Adrien Didierjean

Mujer en el jardín, París, primavera de 1930
Musée National Picasso-Paris
Doação Pablo Picasso, 1979
© Sucesión Pablo Picasso. VEGAP, Madrid, 2022
Foto © RMN-Grand Palais (Musée national Picasso-Paris) / Adrien Didierjean / Mathieu Rabeau

El hombre del cordero,
París, março de 1943
Valsuani,
Musée National Picasso-
Paris
Doação Pablo Picasso, 1979
© Sucesión Pablo Picasso.
VEGAP, Madrid, 2022
Foto © RMN-Grand Palais
(Musée national Picasso-
Paris) / Adrien Didierjean

Hombre Cactus I, 1939
González Administration

Campesina con cabra, 1906
Centre Pompidou. Musée National d’Art Moderne /
Centre de Création Industrielle, París
Doação de Mme. Roberta González, 1964
Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais / Georges Meguerditchian

Cabeza de ojos grandes, 1930-1932
Lehmbruck Museum, Duisburgo
1194 / 1966
Foto: Bernd Kirtz