TEXTO: ÁREA DE CULTURA DA FUNDACIÓN MAPFRE
A exposição oferece um exaustivo tour pela carreira da fotógrafa estadunidense Berenice Abbott, cuja obra está entre as mais cativantes da fotografia norteamericana da primeira metade do século XX e atua como uma ponte entre os círculos culturais da vanguarda de Paris e de Nova York dos anos 1920 e 1930.
A ideia de modernidade invade todo o trabalho de Abbott, desde seus retratos dos artistas e intelectuais mais vanguardistas do momento e suas incríveis vistas da cidade de Nova York – que compõem seu projeto Changing New York –, até suas fotografias de temas científicos em que retrata os resultados de diversos fenômenos e experimentos. Juntas, suas fotografias constituem um retrato excepcional da modernidade do novo século, uma ideia sobre a qual se baseia a presente exposição.
Ademais, realizar uma exposição de Abbott em 2019 requer a revisão da própria noção de «documento», de «fotografia artística» e de «autobiografia». E, embora a intenção da fotógrafa de escapar dos supostos artifícios da arte seja palpável em suas imagens, o resultado visual é tão rico e diverso que dificulta categorizá-las sob o adjetivo documental, e até mesmo nos obriga a enfrentar a impossibilidade final de uma «fotografia documental» sem fissuras.
Sua figura é, por outro lado, essencial na valorização do trabalho de Eugène Atget. Após a morte do fotógrafo francês em 1927, Abbott compra todos os seus arquivos pessoais. Durante várias décadas, se dedicará a promovê-lo com devoção e sucesso e a incentivar o colecionismo de sua obra nos Estados Unidos, tornando-se uma figura-chave para a fortuna crítica e historiográfica do legado do fotógrafo.
Quase duzentas fotografias de época, agrupadas em três seções temáticas, compõem esta exposição produzida pela Fundación MAPFRE e curada por Estrella de Diego, professora de Arte Contemporânea da Universidade Complutense de Madrid e membro da Real Academia de Belas Artes de San Fernando.
É a maior retrospectiva de Berenice Abbott organizada na Espanha, com imagens de época de algumas das mais importantes coleções americanas: The New York Public Library (Nova York), George Eastman Museum (Rochester, Nova York), Howard Greenberg Gallery (Nova York), International Center of Photography (Nova York), MIT Museum (Cambridge, Massachusetts) e o Museum of the City of New York (Nova York). Depois de passar por Barcelona, poderá ser visitada na Sala Recoletos da Fundación MAPFRE em Madrid (de 1º de junho a 25 de agosto de 2019).

Berenice Abbott (Springfield, Ohio, 1898-Monson, Maine, 1991)
Berenice Abbott inicia seus estudos universitários em 1917 na Ohio State University com a intenção de se tornar jornalista. Só ficou lá por alguns meses, pois em 1918 muda-se para Nova York e se estabelece no Greenwich Village, um estimulante ponto de encontro para artistas e intelectuais, o que facilitou seu primeiro contato com criadores como Marcel Duchamp.
Então, começa a praticar escultura e, apenas três anos depois, viaja para a Europa e se estabelece em Paris, onde começa a trabalhar como assistente no estúdio de Man Ray e descobre sua verdadeira vocação: a fotografia.
Desde o início de sua carreira fotográfica testemunhamos essa dualidade na qual suas obras sáo tanto documentais e, ao mesmo tempo, belas amostras de um projeto artístico e até mesmo autobiográico
Em 1926, se firma como uma fotógrafa independente e seus retratos, dos artistas e intelectuais mais vanguardistas do momento, logo adquirem grande renome.
Também agora, em meados da década de 1920, Abbott conhece Eugène Atget através de Man Ray. Fica realmente impressionada com sua obra; as qualidades que, como poucos, consegue perceber nela a inspiram desde o início um profundo respeito pelo francês e também lhe proporcionam uma referência importante para transformar suas aspirações como fotógrafa: uma fotografia que, apesar de querer manter-se à margem das pretensões artísticas, é muito mais que um documento.
Após seu retorno a Nova York em 1929, Abbott embarca na produção de seu maior acervo: a documentação fotográfica do crescimento dessa cidade, até certo ponto inspirada no exemplo da Paris de Atget.
Ela desenvolve este projeto de forma independente até que, em 1935, consegue financiá-lo com a ajuda do programa Federal Art Project, que lhe proporciona um contrato para trabalhar na série em tempo integral. Estas imagens são publicadas em 1939 com o título Changing New York, alcançando grande sucesso de crítica e vendas.
Um ano antes, em 1934, começa a lecionar na New School for Social Research, onde permaneceu como docente até 1958.
É no final da década de 1950 que inicia outro de seus grandes projetos: a documentação fotográfica de fenômenos científicos, em colaboração com o Massachusetts Institute of Technology (MIT). Muitas dessas imagens são profusamente usadas durante a década de 1960 para a ilustração de livros didáticos de física.
Em 1959, a associação Professional Photographers of America posiciona-a entre as dez primeiras mulheres fotógrafas do país.
Diante deste objetivo, Nova York se torna um ser vivo, um extraordinário personagem que é descoberto diante de seus visitantes em seus impressionantes arranha-céus, na agitaçáo de suas ruas abarrotadas, na diversidade do que suas vitrines oferecem
Sua obra é objeto de uma exposição retrospectiva em 1970 no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York e, em 1983, se torna a primeira fotógrafa admitida na American Academy of Arts and Letters. Em 1988, o governo francês nomeou-a Officier des Arts et Lettres e ela também recebeu o prêmio Master of Photography, outorgado pelo International Center of Photography de Nova York.
Falece em Monson em 9 de dezembro de 1991.
PERCORRIDO PELA EXPOSIÇÃO
1. Retratos
A primeira seção da exposição é composta por alguns de seus retratos dos personagens mais inovadores da época. Sob seu aspecto cuidadoso e formal, se esconde algo mais do que uma excelente fotógrafa: todos eles nos fazem ver que Berenice Abbott está construindo um arquivo, está documentando uma certa tipologia do moderno. Retrata principalmente o projeto de vida de um grupo do qual ela faz parte: o das «novas mulheres», dispostas a viver à margem das convenções para salvaguardar sua liberdade. Os homens também mostram em seus retratos uma masculinidade menos monolítica da que estamos acostumados.
Assim, embora Abbott busque estabelecer certas «tipologias» nestes retratos, estamos ante uma série de obras claramente autobiográficas, pois a própria fotógrafa faz parte do grupo que retrata.
Desde o início de sua carreira fotográfica testemunhamos essa dualidade na qual suas obras são tanto documentais, quanto propostas “tipológicas” arquivísticas e, ao mesmo tempo, belas amostras de um projeto artístico e até mesmo autobiográfico.
2. Cidadess
A segunda seção da exposição inclui o deslumbrante e espetacular retrato que Berenice Abbott fez de Nova York durante a década de 1930. Sem dúvida, o olhar moderno de Abbott foi capaz de perceber as possibilidades infinitas oferecidas por esta cidade para capturar essa modernidade única que até hoje é um emblema. Diante deste objetivo, Nova York se torna um ser vivo, um extraordinário personagem que é descoberto diante de seus visitantes em seus impressionantes arranha-céus, na agitação de suas ruas abarrotadas, na diversidade do que suas vitrines oferecem.

Também nos aproxima de alguns de seus bairros mais marginais, o que novamente deve ser visto como um sintoma da modernidade de uma mulher que não hesita em abordar essa outra realidade.
Por tudo isso, esta série é a mais notável de sua produção.
Ademais, o testemunho de alguns lugares agora desaparecidos, bem como a construção de outros tradicionalmente emblemáticos. Levando em conta o fascínio de Abbott por Eugène Atget e o apoio desinteressado que sempre dedicou à divulgação de sua obra, onze fotografias do artista, assinadas pela própria Abbott em 1956, completam esta seção em diálogo com as obras da estadunidense.
3. Ciência
A terceira e última parte da exposição concentra suas fotografias de experimentos e fenômenos científicos, nas quais começa a trabalhar no final dos anos 50, como parte do Physical Science Study Committee (PSSC) do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Os arquivos desta prestigiosa instituição guardam boa parte dessas imagens de Berenice Abbott, e delas procedem as vinte e oito peças de tema científico presentes nesta exposição, cedidas pelo MIT Museum. Dezesseis delas são expostas da mesma forma que a própria Abbott originalmente as preparou para a exposição: montadas sobre um suporte de masonite sem proteção frontal.
Diante delas, testemunhamos mais uma vez a dualidade que perpassa seu trabalho: são fotografias que documentam fenômenos físicos (na verdade, foram usadas para ilustrar livros didáticos), mas ao mesmo tempo mostram a imaginação e a criatividade preciosa de Abbott. Em cada uma delas, oferece soluções inesperadas para essa tarefa de «documentar», com incrível sagacidade, um ambíguo e poderoso jogo de luz que, de certo modo, nos transporta para suas antigas imagens de Nova York.
Mais uma vez, a transformação pura foi identificada pelo olho moderno de Berenice Abbott e capturada por sua câmera gerando imagens prodigiosas.